segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Eid-ul-Azha

Bangladesh está se preparando para o próximo feriado nacional: Eid-ul-Azha. Serão três dias de comemoração, mais a emenda do final de semana. O país vai parar por no mínimo cinco dias: festas, comida, música, reencontros de família, longas viagens e sacrifício. No Eid, muçulmanos de Bangladesh, da Índia, do Paquistão e do Irã oferecem a Alah, em sacrifício, um touro, camelo ou búfalo (caso o indivíduo não tenha condição financeira de arcar com qualquer desses animais, ele pode sacrificar uma cabra ou um carneiro. Galinhas e outros bichos de pena, não vale!). Ainda, aqueles que não têm condição de comprar nenhum desses animais, estão liberados da função. Alah assim autorizou. Só precisam sacrificar aquilo que lhes é precioso, para demonstrar a sua verdadeira fé ao criador, aqueles que tiverem condições econômicas para tanto ...

O Professor Latifee me contou que quem sacrifica um touro, ou camelo, ou búfalo, pode “beneficiar” 7 pessoas, além de si mesmo. Ou seja, o sacrifício pode ser feito em nome de quem comprou o sacrificado e mais 7 membros da família ou amigos que o titular escolher. Quem sacrifica um carneiro ou cabra, não tem esse privilégio. Apenas o titular do bicho é beneficiado pelo ritual nesse caso. Detalhe: os camelos vêm marchando da Índia, não há camelos nesse país. Vocês sabiam que tem gente que come carne de camelo? Isso deveria ser ilegal, de tão esquisito que é. Imaginem o garçom chegando no rodízio em São Paulo e perguntando: "Vai aí uma picanha de camelo?". Sem estética alguma, não?

O ritual de sacrifício é uma homenagem a Abraão, que, em algum momento de sua vida, a pedido de Deus, concordou em sacrificar aquilo que lhe era mais precioso: um de seus filhos, Isaac. No momento da execução, com o filho preparado para morrer para obedecer a seu pai e satisfazer a vontade de seu mestre, Deus mostrou misericórdia e tendo em vista a fé cega de seu seguidor, salvou o filho de Abraão da morte e, em seu lugar, ficou com um carneiro (para constar, não sou nenhuma especialista em religião e não pesquisei para escrever sobre esse momento na vida de Abraão. Estou repetindo o que eu escutei hoje dos meus amigos bengali. Aos mais religiosos e bons sabedores dos textos sagrados, me desculpem a falta de precisão).

Assim, desde então, todos os anos, o povo muçulmano repete o ritual de sacrifício do animal, para consolidar a sua fé e compromisso com Deus. O pobre coitado do bicho sangra até morrer e todos comem de sua carne: a família, os vizinhos, e os mendigos. Eid é sinônimo de sacrifício, generosidade, comprometimento com o outro e fé. Existem dois Eid no calendário muçulmano. Esse e aquele depois do Ramadã, o Eid-ul-Fitr.

Desde cedo percebi animais marchando inquietos por toda a cidade, no meio das ruas, entre os carros, amarrados nos caminhões e nos rickshaws. Todos indo para seu destino final, literalmente, o mercado de animais. Confesso que não teve graça ver os animais pintados de verde, vermelho, amarelo, azul. Alguns usam ornamentos que os enfeitam, fitas, sinos e outros badulaques de péssimo gosto pendurados no pescoço. Os criadores de animais fazem um bom dinheiro nessa época do ano. Também tem mercado para os “carrascos”, que são bons em executar – degolar - os bichos rapidamente, em tese sem dor ou sofrimento. O comércio vende como no dia das mães no Brasil. Todo mundo quer voltar para casa com presentes e roupas novas.

“Younus, você vai degolar um também?”

“Sim, claro. Quer dizer, eu não sou bom em matar. Vou contratar alguém para fazer isso, mas vou sim comprar um carneiro e fazer um almoço com as minhas irmãs”.

“Mas não dá para o ritual ser uma metáfora e evitarmos sacrificar tantos bichos ao mesmo tempo?”

“Não entendi, Marina. Como assim? É um privilégio morrer por Alah. Melhor morrer assim do que simplesmente virar um bife sem causa”.

Tá certo. Não está mais aqui quem falou. Afinal de contas, eu também como carne de vaca. Qual a minha moral nessa história?

A cidade já começou a esvaziar. O governo liberou todos do trabalho alguns dias antes do início do feriado (dia 17 de novembro começa), para que as pessoas tenham tempo de chegar em suas vilas no interior. O Grameen continua trabalhando, claro. Quer dizer, a diretoria. Estávamos em reunião no Grameen hoje: eu, Professor Yunus, Professor Latifee e Tamim. O intérprete passou para me dar um alô. Alguns assistentes e guardas na porta. E só. O prédio estava vazio.

Me contaram que viagens de 200 e 300 km demoram mais de um dia de carro ou ônibus, por conta do trânsito e do caos nas estradas. Os jornais já começaram a computar as mortes nas estradas, tal como fazemos no carnaval. Tudo igual, em todo lugar.

O partido da oposição diz que parou com a greve e as manifestações contra o governo em sinal de respeito ao Eid e, assim que o feriado acabar (semana que vem), eles retornarão com a algazarra. Que venham as comemorações! Falando em manifestações da oposição, o Professor Latifee me contou com mais detalhes toda a história do despejo ... vou contar no próximo post. Vale um capítulo a parte.

No caminho da volta do almoço (numa van da diretoria), levamos um susto com um touro enorme, todo colorido, em disparada na rua ... fugiu ... 2 homens desesperados corriam atrás do pobre do bicho prometido à morte. Perguntamos para um dos homens esbaforidos atrás do fujão: “Quanto custa esse? Ele é grande!”. “82 mil takas, Madam!”. O Professor Latifee me falou que era barato, para o tamanho do bicho.

Perguntei: “Professor Latifee, onde que as famílias matam os bichos? Em algum lugar específico e depois levam a carne para casa?”

“Não, não. Na frente de casa mesmo. Todos matam os animais na frente do portão de casa, na rua”.

“Quer dizer que as ruas ficam cheias de animais morrendo, todos juntos, assistindo a própria morte?”.

“Sim”.

“E o sangue na rua?”

“É, realmente tem bastante sangue na rua por três dias”.

Tá certo. Fiquei com uma aflição doida de imaginar as vacas assistindo ao próprio extermínio.

“Coitados. Você acha que eles sabem que vão morrer?”

Tamim: “Com certeza. Eles começam a chorar na noite anterior. Quando a morte chega, é um alívio para eles”.

Meus anfitriões me convidaram para celebrar o Eid com eles. Estou na dúvida se quero ir assistir isso. Acho que vou antecipar a minha ida para a Índia, tratar as vacas como um ser sagrado. Faz mais o meu gênero.

About sacrifice and the offering of sacrifices, sacrificial animals think quite differently from those who look on: but they have never been allowed to have their say - Friedrich Nietzsche

Aos muçulmanos que eu muito respeito, minhas sinceras desculpas, mas fico com Nietzsche nessa ocasião.

Um comentário:

  1. Marina, concordo com vc. O "segundo Eid " é uma matança a céu aberto. Um horror! Mas isso q vc esta vivendo é uma experiência unica e mto gratificante. Continue relatando o q esta acontecendo pq assim vivemos um pouco da sua estória. Bjs, CeCé

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