terça-feira, 9 de novembro de 2010

Rajshahi - Parte 6 - Outros Fatos e Casos

Essa semana uma cliente do Grameen fechou a sua conta poupança, pagou o empréstimo em aberto e foi embora. Presenciei o ocorrido, que é uma raridade. Quando uma mulher se junta ao Grameen, costuma pegar novos financiamentos subseqüentemente, para continuar investindo nos negócios, moradia, educação dos filhos e saúde. É uma relação meio que vitalícia, que passa de geração a geração ...

A Hajira, 35 anos, contou ao branch manager que está indo embora com o marido – recém-casada, e não precisa mais trabalhar. Ela não tinha casado até hoje, pois não poderá ter filhos e isso é um mega problema aqui – apesar de não existir mais espaço para novas crianças, a habilidade de procriar é um dos requisitos essenciais de qualquer boa moça que queira se casar. O marido da Hajira ficou recentemente viúvo, já tem duas filhas, e não sem importou em casar novamente com uma mulher estéril, “mais velha”. Ela estava muito feliz. Acho que gostou de finalmente ser a esposa de alguém.

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Conheci dois homens da vila hoje. Eles são amigos do branch manager e vieram fazer uma visita e conhecer a estrangeira. Os dois se aproximaram, se apresentaram (em Bangla), me apresentei (agora faço uma saudação para dar oi para as pessoas, como no exército – é o costume) e sentaram do meu lado. Conversei com eles com a ajuda do intérprete. Um deles é professor na escolinha local e o outro se apresentou como médico responsável pela vila - o dente vermelho de PAAN. Perguntei: “nossa, médico, que bacana, escola de medicina é difícil?”. Rahim respondeu: “o meu curso foi de três meses e já estou habilitado a ser médico na vila”. Nem pensar em ter uma apendicite aqui. Não me espanta a morte da Jui. O intérprete riu.

Rahim me observou um tempo e perguntou ao intérprete, com uma cara bem da séria, qual o motivo de eu estar escrevendo com a mão esquerda. “Ela tem problema na mão direita? Não consegue mexer?”. Expliquei que era canhota e que eu escrevia sempre com a mão esquerda, mas que a minha mão direita era perfeita, “olha só, acenei para ele”. Ele balançou a cabeça, nitidamente contrariado. Ficou decepcionado com a estrangeira. O intérprete disse que no interior é mais complicado para eles entenderem que usar a mão esquerda não é ponto negativo.

No dia seguinte passamos pela loja do Rahim na vila e ele acenou para nós, todo sorridente, ainda dente vermelho. Paramos para um chá. Aqui todo mundo toma chá, a todo momento, em qualquer lugar. Ele tem uma farmácia!!! Detalhe: a esposa dele que montou, com um empréstimo do Grameen, há 10 anos atrás. Isso é o mais próximo de um médico que existe nessa região. Rahim adorou que paramos lá para conversar. Me deu de presente duas pastilhas de vitamina C (?!!!), me fez provar melaço e PAAN. PAAN é horrível. Não entendi qual a graça dessa planta. Cuspi, todo mundo riu, fui a diversão da tarde. Enquanto eu estava sentada na farmácia do Rahim uma multidão de pessoas parou para me olhar. Mais de 60 pessoas da vila vieram ver a estrangeira. Eles apontaram, riram, uns mais barbudos olharam meio feio, fizeram perguntas e falaram “Pele”, “Ronaldinho”, “Kaka” e “Brasil”. Bangladesh é brasileiro! Já estou me acostumando com os olhares e quando começo a tirar fotos, metade vai embora com vergonha, alguns posam felizes, outros dão risada e se escondem embaixo das roupas.


Nosso médico, de "categoria", todo orgulhoso na sua loja

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Hoje é sexta feira, mas para o povo de Bangla é sábado. Os finais de semana aqui são na sexta e no sábado. Acho que eu gosto desse esquema. Você evita o bode insuportável de domingo de tarde (já é dia de trabalho aqui) e a segunda feira já está perto da quinta.

O intérprete e eu discutimos Grameen apenas por uma hora e meia hoje e ele se declarou livre de mim, unilateralmente. Foram ele e o branch manager tomar um chá na vila, depois rezar, e não me levaram. Eles não deram opção, então a minha opção foi aceitar a escolha deles, e ficar aqui com cara de feliz. Detalhe: deixaram um officer da branch tomando conta de mim, cuja função única era não me deixar sair na rua sozinha.

A sede do Grameen deve ter uns 400 metros quadrados. Não é pequeno o lugar, mas quando te deixam aqui com duas mulheres que não falam a sua língua e não entendem o seu costume, pode ser um problema. Ficamos uma olhando para a outra (elas sempre rindo de mim) e percebi que elas tinham que ir para a cozinha fazer o almoço. Fui junto. Entrei, pedi permissão (mímica), elas autorizaram, fiquei.

A cozinha bengali, aqui na zona rural, é surreal. Parece que voltamos para a idade média. Elas cozinham agachadinhas, num quarto de 2 metros quadrados, chão batido de barro, com um fogão pequeno à lenha num dos cantos. Panelas, facas, potinhos, potões, temperos. Elas não me deixaram ajudar (honestamente eu não saberia usar nenhum desses utensílios de cozinha), mas ofereci para ser gentil. Fiquei observando tudo, agachada junto, fotografando, chocada com a capacidade delas de picar batata doce com um facão afiadíssimo (parecia que tinha passado por um super processador, de tão perfeito que os legumes ficaram), amassar alho com uma pedra, cortar a carne em cubos perfeitos, preparar o fogo e esperar. O ritmo aqui definitivamente é mais lento... Ninguém tem pressa para nada, todo mundo conversa com calma, depois do almoço a maioria deles tira uma soneca e para ajudar com o ritual do dia: chá, chá, chá.

Os homens voltaram na hora em que o almoço estava ficando pronto. Claro! Chegaram animados com um mamão papaia para nosso próximo café da manhã, sorvete e diet cola e para me contar que amanhã, sábado (como se fosse nosso domingo) não precisaremos trabalhar e poderemos fazer um passeio. Vamos visitar uma mesquita que foi construída há 500 anos, um templo hindu e a casa de um antigo imperador da região. A foto da mesquita estampa a nota de 50 takas aqui.

Alugaram um carro na cidade mais próxima para nós (vamos eu, o intérprete, o branch manager e a esposa) e amanhã bem cedo sairemos. O preço do passeio saiu a bagatela de 1.000 takas (realmente o Hajid e o Kamal, malandros da cidade, estavam me roubando.

A comida ficou ótima e depois da manhã de hoje sou ainda mais grata à esposa do branch manager por todas as refeições que tenho feito aqui: dá um trabalho dos diabos. O cardápio do dia foi: arroz, batata palito com camarão frito, carne e abóbora. Também achei uma mistura esquisita, mas o gosto estava ótimo. Pedi para almoçar com a família hoje. Geralmente almoçamos apenas eu e o intérprete, na sala que fica na frente dos nossos quartos. A esposa do branch manager adorou a companhia, apesar de não conseguirmos nos comunicar verbalmente. Mas a gente se entende.

2 comentários:

  1. Querida Prima... Que orgulho de vc .... Estou seguindo super a sua viagem e achando tudo muito interessante... Obrigada pelas informações e mais conhecimento... Beijos minha querida

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