terça-feira, 9 de novembro de 2010

Rajshahi - Parte 3 - O intérprete

O interprete tem 35 anos. Nasceu em Dhaka. É muçulmano, mas diz que ficou bem mais religioso depois que a noiva, Jui, faleceu. Isso faz pouco mais de um ano. Ela tinha 28 e eles iam se casar em dois meses e morar nos EUA. Era bem bonita, eu vi a foto. A coitada teve apendicite em Dhaka, Mirpur, pertinho da sede do Grameen. O anestesista errou a dose e o resto é história. Me fez lembrar do infectologista em São Paulo, que visitei quando me programava para vir para cá:

“Marina, com essas vacinas, esses antibióticos e esses cuidados básicos de higiene, você estará protegida e nada de muito grave pode acontecer. Bom ... você pode ter apendicite. Mas tenho certeza que em Dhaka não se morre de apendicite.”

Então ...

Ele estava trabalhando como intérprete nos EUA quando do ocorrido e chegou para o enterro. A família da noiva aceitou fazer um acordo com o médico culpado, e desistiu da ação de responsabilidade civil na justiça. O intérprete fez escândalo, foi nos jornais, reclamou, mas não teve jeito. Ninguém foi responsabilizado pela morte da noiva. Ele brigou com a família da noiva e nunca mais os viu. No mesmo ano, os pais dele morreram: a mãe estava doente faz tempo (diabetes, a maior causa de morte em Bangla) e o pai não resistiu de tristeza poucos meses depois. Sobraram ele e cinco irmãs, sendo que três são casadas. Ele disse que pensa na noiva todo dia.

Falei para ele mudar de país e tentar um cenário diferente daqui. Diz que não conseguiria ir embora de Dhaka, é a cidade dele. Quem bom que todos os habitantes de Dhaka não resolvem migrar para o resto do mundo e realmente gostam de morar lá – 15 milhões de pessoas amontoadas, respirando um ar pesado e marrom. Realmente a pessoa tem que estar desesperada para achar que lá é melhor que um lugar como aqui. Mas, de novo, o intérprete disse que tem lugar no norte do país que é mais desastroso que Dhaka e por isso as pessoas continuam indo para a pequena grande cidade.

Voltando ao assunto “possibilidade de mudança”, o intérprete disse que não teria dinheiro para ir embora, mesmo se quisesse. Resolvi que vou arranjar um jeito de ajudar o intérprete até ir embora daqui. Ele quer trabalhar para a ONU e não consegue nem uma entrevista lá, pois não tem contatos. Ele é muito competente e tem o inglês perfeito – aprendeu sozinho, o que é impressionante. Alguém conhece alguém na ONU de Dhaka para dar uma referência para mim?

O intérprete entrou na faculdade três vezes e nunca conseguiu terminar. “Sempre alguma coisa acontecia quando eu começava um curso e eu tinha que largar. A última tentativa foi quando a minha noiva morreu. Não vou voltar a tentar muito cedo”.

O problema é que em Dhaka o índice de desemprego é superior a 40% e quem não tem um diploma tem muita dificuldade para arranjar emprego. Quem consegue o diploma também. O nível de analfabetismo em Bangla é perto de 20%.

***

O intérprete disse que quem não casa aqui fica sozinho na velhice. Ele tem medo de ficar só. Das duas irmãs não casadas, uma tem 40 anos e é vice-presidente de um banco local. Ela é independente, bem sucedida e resolveu não casar. “Ela é feliz agora, mas vai ficar velha sozinha. E vai ser triste. Nesse país, mulher que não tem família, fica isolada, pois as relações de amizade para elas são restritas. Não é como nos EUA ou no Brasil. Aqui, as mulheres casadas que fazem parte da mesma família estão sempre juntas e se apóiam”. Devo admitir que elas estão sempre sorrindo aos bandos. Mas ainda não entendi se elas são felizes ou se elas simplesmente fazem o que podem. De qualquer jeito, bela lição de vida.

Agora falando tanto de homens quanto de mulheres, o intérprete me diz: “quem não casa não tem charme na vida”. Não deixa de ser irônico, considerando a aparente relação de opressão entre os maridos e suas esposas (devo confessar que o branch manager e sua esposa parecem ser um casal bem feliz).

“Se você quiser casar com alguém que não seja da sua religião, pode?”.

“Sim, desde que eu tenha procurado uma moça da minha religião e não tenha encontrado ninguém de quem eu goste. Nesse caso eu posso casar com uma cristã ou judia. Hindu não”.

“Qual a razão”?

“Os hindus acreditam em muitas divindades. Só posso casar com alguém que acredite em apenas um Deus, como eu”. Pensei se deveria intervir e colocar o meu ponto de vista: "mas toda religião, no fundo, se baseia no mesmo princípio universal ...".  Depois achei que uma brasileira que está no interior de Bangladesh não precisa ser intrometida a esse ponto e tentar convencer um muçulmano que casar com hindus não tem problema. De qualquer forma, que pena para o intérprete, pois vi mulheres hindus belíssimas e elas têm os cabelos mais incríveis que se pode imaginar.

Ele nunca vai admitir isso, mas acho que o intérprete é um muçulmano em busca de amor romântico ocidental.

***


“Younus, me explica como funciona o casamento muçulmano”.

“Nós não achamos que a mulher é menos do que o homem. Ela pode fazer tudo o que os homens fazem, mas apenas devem cobrir a forma do corpo e o cabelo”. Não consigo entender a parte de cobrir o corpo e o cabelo como uma relação de igualdade, mas vamos lá ...

“Quando um homem quer casar com uma mulher não tem que pagar dote de nenhum dos lados”. “Na verdade, o marido dá uma jóia para a noiva antes do casamento e antes de encostar nela pela primeira vez lhe dá uma quantia em dinheiro. Pode ser 100 mil taka, pode ser 200 mil taka, pode ser 1 milhão de taka, depende da capacidade financeira do marido. Esse dinheiro é só da mulher e ela pode usar em qualquer momento da sua vida, principalmente se o marido lhe faltar e ela estiver em dificuldades financeiras”. Véu caro esse...

Younus em momento raro de descontração ... peguei ele no pulo ...


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