terça-feira, 9 de novembro de 2010

Rajshahi - Parte 1

A viagem foi melhor do que eu esperava. O ônibus tinha ar condicionado (um luxo aqui) e não estava lotado. O motorista foi tão cuidadoso quanto um motorista de ônibus consegue ser por essas bandas, e depois que nos afastamos de Dhaka e dos subúrbios mais próximos o trânsito melhorou muito. Na viagem toda levei apenas dois sustos (um rebanho de cabras e um caminhão conmpletamente na contramão), o que foi excelente para as minhas expectativas alarmistas.

É bom ter o intérprete comigo. Ele é meio que uma babá multi-uso: ajuda a escolher os pratos nos restaurantes, faz os pagamentos devidos (todo dia eu dou algumas takas para ele, já que eu pago as minhas despesas e as dele também), age como guarda-costas, fala onde posso ir e que água posso beber (sempre mineral, claro), explica (ou tenta explicar) as razões e os motivos de alguns costumes e folclores exóticos locais, adora falar do Barack Obama (ele é um ídolo aqui) e de vez em quando fala sobre a noiva que morreu no ano passado.

Eu tinha achado o meu intérprete meio sério e impaciente no primeiro dia em que o conheci. Na verdade ele é um pouco triste mesmo. Paciência ele tem de monte. Responde todas as perguntas que eu metralho, dia e noite. O intérprete chama Younus (diferente do fundador do banco, que chama Yunus). Contarei dele e da noiva falecida mais para frente.

O caminho para cá também foi uma boa surpresa. Bonito. Calmo. Quase bucólico, não fossem as dezenas de pessoas amontoadas nas rotatórias da estrada, no meio do asfalto ou enlatados nos ônibus que, sempre buzinando, nos ultrapassavam ou dos quais tivemos que desviar no sentido contrário da estrada. Também passamos por três caminhões virados, aparentemente sem vítimas fatais, com todas as mercadorias espalhadas pela estrada. Os caminhões tinham uma coisa em comum: coloridos. Em cada acidente, uma pequena multidão olhando tudo: povo curioso, que em público olha muito e fala pouco.

Deixamos para trás um cachorro marrom claro esmagado (como em desenho animado, colado na estrada), dois pedágios, arrozais, rios, pântanos, flores, palmeiras, bambuzais e pequenas vilas. De vez em quando podíamos notar alguém dando banho em uma vaca, ou tocando um rebanho de carneiro ou de cabra. Um molequinho pelado, de uns cinco anos, brincando com um bezerro preguiçoso que teimava em ficar deitado, um homem velho, barbudo e muito magro de sunga branca bengali pescando num rio verde gosmento, pessoas tomando banho de roupa no mesmo rio nojento, e vários surfistas de ônibus e caminhões.

O ônibus fez uma parada para esticarmos as pernas, usar o banheiro (experiência inédita, pois era no chão!) e tomar alguma coisa. Eu tomei uma Pepsi quente (não tinha Coca-Cola), o intérprete tomou um chá com leite e voltamos para nossa viagem.

Ainda não entendi qual é a graça de tomar chá com leite. “Pegamos esse hábito dos ingleses”, me disse o intérprete. Além do cricket e do chá, acho que a sociedade bengali não herdou mais nada dos ingleses. Digo isso com todo respeito a ambos os lados. Uma vírgula importante: os chás aqui são divinos, fervidos quase sempre com gengibre e adoçados com melaço. Eles adoram dizer que os chás deles são muito melhores que os chás ingleses.

No posto perguntei ao intérprete porque várias crianças de colo tinham a mesma manchinha no rosto – eu já estava começando a achar que era algo da genética da região – muitos bebês com uma pinta preta de uns dois centímetros, no lado alto esquerdo da testa.

Ele riu ...

“Os pais acreditam que essa pintinha no alto da testa do bebê afasta mau-olhado” .... “Hum”. Entendi. “Então eles colam uma pintinha fake no rosto para proteger o bebê”?

“Sim”.

Tá certo.

Chegamos na sede do Grameen no início da tarde. É um prediozinho simpático de dois andares, super simples. A maioria das outras casas na vila é de barro, palha, madeira. Estou hospedada no primeiro andar. Divido o banheiro com o meu intérprete – detalhe desagradável. O branch manager e sua esposa moram aqui também.

O intérprete disse que eu não devo sair na rua sem ele e sem estar coberta. Vou me fantasiar para passear. “Aqui na vila o pessoal é mais conservador”.

A vila tem o charme máximo que uma comunidade bengali pobre consegue ter. O ar é bom de respirar. As casas são super simples, mas são bem cuidadas e limpas. Tem tudo quanto é bicho nas ruas, inseto que não acaba mais, galinha, pato, vaca, cabra, carneiro, cachorro, gato, passarinho, corvo. Não vi um cavalo sequer ainda nesse país .... o intérprete diz que cavalo custa caro e dá trabalho para cuidar ... “com o tempo eles morrem, nós não sabemos cuidar”. Tem bicicleta, motocicleta, rickshaws e outros veículos misturados, meio carroça, meio rickshaw, meio bicicleta, que são “pedalados” por um coitado magricela que carrega carga ou gente atrás. Muitas plantações de arroz e cana, bananeiras, manga, mamão, cebola, palmeiras, além de fabriquetas de melaço. Apesar da ultra-simplicidade de tudo, nitidamente as pessoas vivem melhor aqui do que em Dhaka. O intérprete concorda comigo: “No norte do país existem algumas regiões bem mais pobres que aqui, onde as pessoas ainda passam fome e não têm o básico para se manter, mas aqui é muito melhor que Dhaka”.

A esposa do branch manager é a nossa cozinheira. Ela chama Dalia, tem 26 anos, mas parece um pouco mais. O primeiro almoço estava espetacular. Frango ao curry, arroz e abobrinha. O intérprete comeu com a mão. Eu comi com garfo, usando a mão direita. Ele disse que não se importaria se eu exercesse a minha “canhotice” e comesse com a mão esquerda, minutos depois de me contar que quando a noiva morreu ele passou a ser uma pessoa muito religiosa e mais tradicional. Fiquei com medo de ofender.

Depois do almoço tirei fotos, conversei com o staff local, conheci as mulheres amigas da Dalia (todas sorridentes e curiosas – Shewly e Jahana foram as que mais ficaram apegadas a mim – uma de 14 anos e a outra de 60), acompanhei o desembolso de alguns empréstimos na sede, falei de futebol com todo mundo (sei que sou repetitiva nesse assunto, mas esse povo é fanático por futebol e por Brasil – e todos falam mal do Dunga) e fui para o quarto ler o monte de material que eu recebi do Grameen. Mais material. Não falta procedimento e manual aqui. Bom, estamos falando de um banco, afinal de contas. Vivo me esquecendo disso.

Tentei de todas as formas estabelecer uma conexão com o mundo exterior, via internet, mas não será possível. Estou fora da rede por oito dias. O telefone do Brasil pega. Meu chip de Bangla deu problema. Só vou conseguir meu número local quando voltar para Dhaka.

Tem barulho de sapo e cigarra lá fora. No teto juro que posso escutar o caminhar apressado dos ratos e das baratas (mas isso tem em NY também, certo?). Meu quarto tem chão de cimento, uma cama de ferro, um colchão de dois centímetros de profundidade, uma rede azul contra insetos, duas janelas (apenas uma delas com cortina), um ventilador de teto e só. Não tem móvel e às 6 da manhã, com o sol a pino, vai ter luz infinita aqui dentro. Inventei meu armário em cima da mala e roubei uma cadeira da sala de almoço para colocar meus apetrechos eletrônicos e assessórios de banheiro.

Não tem toalha de banho aqui. Eles esqueceram de dizer que eu precisava trazer. O intérprete foi comprar uma na vila e voltou agora. Na verdade é uma flanela vermelha, meio desfiada, de uns 60 centímetros. Não tive alternativa: improvisei uma toalha com um dos xales que eu trouxe para cobrir o cabelo. Já sinto falta do banho do hotel.

Como é tudo de pedra e cimento aqui, o céu é sempre azul e nunca chove, vou fechar os olhos e imaginar que estou no Kirini de Santorini, na Grécia.


Achei que podia poupar todos da foto do banheiro ...

Abaixo, foto da Dalia (laranja) e das amigas que sempre iam me visitar ....





 
 
E algumas fotos da vila e das pessoas que moram lá ...
 
 









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