terça-feira, 9 de novembro de 2010

Rajshahi - Parte 5 - Mantra do Grameen

O banco é uma religião. O mantra dessa religião resume-se a duas palavras: confiança e disciplina. Eles têm até um grito de guerra, que é repetido no começo e no final de cada reunião de grupo (acreditem, eu decorei!):

“Oykko, kormo, sringkhola, ey amader poth chola
Oykko, kormo, sringkhola, ey amader poth chola
Oykko, kormo, sringkhola, ey amader poth chola”

Significa: União, trabalho, disciplina, é a nossa forma de melhorar.

Contando assim, parece meio ridículo. Ao vivo e dentro do escopo, não é. Mesmo. Precisei me segurar algumas vezes para não cantar com elas.

Voltando para o mantra do Grameen, os clientes precisam confiar que o banco não vai entrar com ação de cobrança contra eles (todos morrem de medo da justiça, do governo e da polícia aqui) e o Grameen precisa confiar que os clientes vão pagar. Curiosamente eles não têm medo do trânsito. Os empréstimos aqui não têm garantia. Aqui também não tem contrato. É tudo anotado numa cadernetinha azul (parece boletim do primário da década de 80) que o cliente recebe do Grameen – acordo meramente “moral”.

Para ser elegível a receber um empréstimo, o cidadão, ou melhor dizendo, a cidadã, precisa cumprir geralmente cinco requisitos (alguns tipos de empréstimos têm algumas variáveis):

1. Não ser proprietária de terra acima de 50 metros quadrados
2. Não ter ativos (casa, moto, galinha, cabra) que tenham valor de mercado acima de 500 mil takas
3. Ser residente na área onde a branch está instalada (mesmo se for sem teto, precisa dormir embaixo de nenhum teto na mesma redondeza, sempre)
4. Os membros do grupo não podem ter relação de sangue
5. Os membros do grupo precisam ter nível de escolaridade e de educação semelhante (para o alto ou para baixo)

Os empréstimos no Grameen são individuais, sem garantia nem aval, mas somente pode receber empréstimo a pessoa que for parte de um grupo de cinco pessoas. As cinco pessoas precisam cumprir com os requisitos listados acima e precisam ter, cada uma, para conseguir o primeiro empréstimo no Grameen, um projeto de geração de renda (pesca, móveis, costura, transporte, melaço, cebola e arroz são os mais comuns atualmente nessa região). O marido (ou o pai ou o filho, na ausência do primeiro) precisa estar de acordo.

O grupo de cinco se auto-escolhe. Não é o Grameen quem seleciona as pessoas, mas as pessoas com interesses semelhantes que se acham. Cada cliente tem a sua idéia de negócio e se o negócio for minimamente viável e lícito, o banco aprova e dá o crédito. Não tem business plan, orçamento ou nada parecido. Mas tem uma ficha cadastral e um cartão de autógrafo. Aqueles que não sabem escrever, passam por um curso antes, com o Grameen, para aprender a escrever seus nomes. O agente do Grameen preenche o formulário com os clientes e vai até a casa deles checar se as informações do cadastro são verdadeiras:

1. Nome do cliente e nome do marido
2. Endereço
3. Idade (eles não sabem preencher esse campo geralmente)
4. Você tem casa própria?
5. Você tem filhos? Quantos?
6. Seus filhos estão na escola?
7. Você tem móveis? Se sim, quantos e quais?
8. Você tem geladeira, máquina de lavar, máquina de costura, e outros apetrechos eletrônicos que tornam a vida da sua adorável esposa um pouco mais fácil?
9. Qual o tamanho do seu terreno?
10. Você tem vaca, cabra, galinhas ou patos?
11. Qual a sua fonte de renda atual?
12. Na sua casa tem luz?
13. O seu marido trabalha?
14. Quanto ele ganha?

O KYC do Grameen Bank deixaria muitos bancos brasileiros com inveja. Eles perguntam tudo o que se pode perguntar para os potenciais clientes e vão até as suas casas checar se é verdade. Todo novo cliente precisa passar por esse procedimento antes de se juntar à família Grameen. Não tem exceção.

Mais de 97% dos clientes do Grameen são mulheres: “elas são mais responsáveis, educam e alimentam os filhos, trabalham firme e pagam em dia”. Os homens ... bom, os homens não vão tão bem no sistema da confiança por aqui ... curiosamente, os homens mandam nas mulheres nesse país. Muitas mulheres pegam empréstimo e tocam os projetos junto com os maridos. Mas são as mulheres que são as responsáveis perante o banco e os demais membros de seu grupo. As mulheres são muito fortes aqui, apesar de todas as restrições e limitações que a cultura e a religião lhes impõem. O Yunus percebeu isso há 30 anos. Impressionante.

Depois que o crédito é concedido, o grupo deve se reunir semanalmente com os agentes do Grameen para contar como estão os projetos recíprocos. Nas mesmas reuniões fazem os pagamentos de juros e principal (sempre semanal) e há o depósito compulsório da poupança. O Grameen ensina a seus clientes que é importante fazer poupança. Assim, sempre que se paga juros de um empréstimo, o cliente faz uma contribuição para a sua poupança. Com parte da poupança o cliente compra ações do banco.

Hoje o Grameen é uma instituição financeira lucrativa, autorizada a operar pelo banco central local, sendo que algo como 96% de seu capital social é detido pelos próprios mutuários. Uma vez por ano há pagamento de dividendos (teve distribuição nos últimos anos). O intérprete diz que a mulherada faz a festa no dia de pegar o cheque dos dividendos. É sempre um dinheiro não esperado e geralmente vai embora rapidinho, para comprar uma vaca para sacrificar e servir em um feriado ou para comprar presentes para a família. Acho que tá tudo certo. Ninguém é de ferro.

O Grameen oferece vários tipos de empréstimos a seus clientes: produtivo básico (geração de renda: famoso auto-emprego), desenvolvimento de microempresa, educação, moradia (no Brasil não é considerado microcrédito o crédito que é concedido para alguém comprar uma casa. Depois de ver o resultado do programa daqui, nossas autoridades deveriam seriamente considerar essa mudança), compra de bicicleta (sem juros!) e compra de motocicleta (5% de juros ao ano).

Cada uma das modalidades de empréstimo tem taxas de juros e prazos de pagamento específicos para os projetos dos clientes, mas o processo de concessão, reunião semanal, pagamento, poupança e monitoramento são quase os mesmos. Tudo é feito dentro do grupo, para que todos possam testemunhar os objetivos de quem pega o empréstimo e também “apoiar” o projeto. Para conseguir empréstimo para montar uma microempresa, educação ou para comprar uma casa (valores mais altos), o mutuário tem que ser membro de um grupo por 2 anos e tem que ter um bom histórico de pagamento. Ainda, alguns poucos empréstimos muito altos para projetos de microempresa de vez em quando contam com garantia (mas é a exceção da exceção).

Se o grupo todo vai bem, e faz os pagamentos em dia, todos os clientes conseguem limites maiores de crédito no próximo empréstimo. Se alguém do grupo não vai tão bem, os limites de crédito dos demais membros do grupo podem ser reduzidos. Todo mundo trabalha para o coletivo: sistema ganha ganha.

Além dos empréstimos, também existem seguros diversos, poupanças e certificados de depósito com juros variados, disponíveis para os mutuários e para o público em geral: entre 8% e 12% ao ano, dependendo do tempo de investimento.



Uma das várias reuniões de que participei


Para provar que eu estava lá!

***
 
A atividade principal do dia aqui no treinamento do Grameen é conversar. Na verdade, eles conversam e eu escuto. Eles riem, apontam, chegam perto, encaram. Escuto estórias o dia todo. Tem cinco perguntas que eu preciso responder toda vez que conheço alguém aqui (mulher, criança ou homem):

1. Você é casada?
2. Você precisou pedir autorização ao seu marido para viajar?
3. Você tem filhos?
4. Qual a sua profissão?
5. Como você chegou aqui (qual o meio de transporte)?

O intérprete já decorou as respostas e se prontifica. Todas as vezes eles riem ao escutar as respostas, com a mão na boca. Divertido.

A metodologia Grameen é repetida diariamente, cada vez um detalhe mais detalhado, um novo ângulo, um novo caso. Eles são muito, mas muito, organizados. Trabalho de formiguinha. Tudo é feito na mão, tudo checado, re-checado, registrado, anotado e guardado. E tem conversa. Disciplina. E mais conversa.

Há também políticas institucionais diversas, programa de avaliação, reunião de feedback, gestão e coaching do time de funcionários, prêmios para os melhores do ano (alguns em dinheiro, entregues pelo próprio Yunus) e promoção a cada três anos (e eles acham bem do bom). A maioria dos funcionários do Grameen faz carreira aqui. Conheci gente que está com o Yunus desde o começo de tudo. Eles também têm auditoria interna (que responde apenas ao Yunus) e auditoria independente externa.

O branch manager e os outros funcionários da branch (cada qual com uma função super específica) tomam conta dos clientes como se fossem parte da família: querem saber como estão os projetos, o marido, os filhos, falam com os vizinhos (para checar a história do cliente) e com o marido (sempre o marido aqui tem a palavra final).

Essa gente valoriza gente, e sabe como ninguém conversar e motivar seus clientes e funcionários. O tópico mais importante aqui é “bom relacionamento entre pessoas”. O banco é, acima de tudo, humano. Sabem o slogan “nem parece banco” que todos nós conhecemos no Brasil? Deveria ter sido vendido para o Grameen Bank. Estou convencida de que este é o segredo do sucesso deles. Os demais procedimentos não são muito diferentes de qualquer banco ou empresa minimamente profissionalizada. A administração do banco é simples e organizada, e eu diria que a fórmula é quase ingênua. Mas está dando certo: desde a sua fundação, o banco deu lucro em quase todos os seus anos de operação. Devem existir problemas, sem dúvida, mas o tempo que passarei aqui não será suficiente para diagnosticar isso.

Os funcionários do Grameen trabalham muito para os padrões de Bangla: 10 a 12 horas por dia. O intérprete acha que é desestimulante. “Não dá tempo de fazer nada além de trabalhar. Não acho certo”.

O branch manager ganha 20 mil takas por mês. Segundo o intérprete vive-se bem com esse salário na vila. Na cidade não dá. “Lá preciso ganhar ao menos 40 mil takas ao mês para viver bem. Sem grandes confortos, mas bem”.

O intérprete é um free lancer do Grameen e não tem trabalho o mês todo. Está ficando cansado da falta de estabilidade, mas como não tem diploma de faculdade não consegue arranjar um emprego com carteira assinada.

Descobri que o maior aprendizado dessa viagem vai ser escutar. Não sou muito boa em ouvir e ficar quieta. Aqui não tem opção (eles não me entendem mesmo) e o relógio definitivamente anda mais devagar do que em São Paulo. O remédio é paciência. Recomendo para outros advogados de mercado de capitais que são ansiosos como eu.

Um comentário: